O “trabalho invisível” sob os holofotes

Em tempos de Corona Vírus e isolamento, muitas pessoas estão trabalhando em casa ou em home office (termo já naturalizado no Brasil). Nós que temos essa possibilidade, somos privilegiados. A rotina não tem sido fácil, mas a situação está muito mais difícil para milhões de pessoas. E o trabalho de casa? Para muita gente – repito, para os privilegiados – esses dois trabalhos estão se encontrando pela primeira vez nesses últimos dias.

O trabalho da casa ou o trabalho não remunerado, aquele com as tarefas domésticas, com os filhos e familiares, faz com que as mulheres dediquem em média quase o dobro do tempo dos homens (21h as mulheres, 10h os homens). Dados da ONU Mulheres apontam que em todo mundo 75% deste trabalho é feito por meninas e mulheres. Hildete Pereira de Melo, professora de economia da UFF, tem um estudo que indica que no Brasil o trabalho não remunerado representaria 12% do PIB. Ela destaca a relevância de se mensurar o trabalho não remunerado para que o mesmo seja enxergado e valorizado.

No Brasil, o trabalho não remunerado se torna ainda menos valorizado do que em outros países. Isso porque, segundo a OIT, o Brasil é o país com mais empregados domésticos no mundo, sendo que 92% são mulheres e 71% dessas são negras. Assim, homens e mulheres de classe média e alta vêm contratando os serviços de empregadas domésticas ao longo da nossa história. Muitas das tarefas da casa, com os filhos e demais familiares são delegadas a essas profissionais. Neste momento, onde cientistas, médicos e órgãos de referências no mundo todo (como a OMS) recomendam que todos fique em casa (com exceção dos serviços essenciais), este “trabalho invisível” está sob os holofotes!

Sim, porque empregadas domésticas também precisam estar em suas casas, cuidando de suas famílias e recebendo seus salários. Este trabalho invisível, associado a outros fenômenos históricos relevantes, faz com que o mercado de trabalho veja o homem como o “trabalhador ideal”. Isso vale para cargos públicos e privados, para a política, para as melhores posições e também para cargos na área de serviços e comércio. Essa realidade é vista também na área de pesquisa (tão fundamental sempre e um pouco mais valorizada nas últimas semanas). Todas as mulheres, sendo ou não mães, percebendo ou não esta realidade, sofrem alguma forma de discriminação no mercado de trabalho.

E isso tudo começa em casa. No Brasil, a grande diferença entre as licenças maternidade e paternidade impacta negativamente a situação das mulheres no mercado de trabalho. Após o nascimento do filho, homens ficam em casa apenas 4% do tempo das mães (120 dias para mães e 5 para os pais). Naturaliza-se assim que mães são responsáveis pelo cuidado e pais pelo sustento. Bila Sorj, professora de Sociologia da UFRJ e com ampla vivência acadêmica internacional, afirma que esta diferença intensifica a desigualdade de gênero nas relações familiares e, consequentemente, no trabalho. Estudos internacionais importantes analisam a existência de um bônus à paternidade e uma penalização à maternidade (termos na língua inglesa conhecidos como fatherhood bonus e motherhood penalty). Tais estudos avaliam como as mulheres são naturalmente prejudicadas nos seus trabalhos, salários e promoções e como os homens se beneficiam quando formam uma família e têm filhos. Vale registrar que o homem branco de classe média é visto como o trabalhador padrão. E quando tem filhos, sua reputação aumenta pois passa a ser visto como o “chefe de família”. Mulheres separadas ou as que criam seus filhos e filhas sem apoio dos pais têm um desafio ainda maior. Muitos pais organizam sua rotina e “ajudam” o que podem, o que entendem necessário. A sociedade ainda entende que o termo “ajudar” é o correto quando na realidade trata-se de responsabilidade de pais e mães cuidar e sustentar as crianças.

No momento atual, com todas as dificuldades existentes, há chance de ampliarmos a discussão sobre este trabalho que sempre foi feito e que está deixando de ser invisível para grande parte da sociedade. Muitos homens e mulheres estão em casa trabalhando, cuidando da casa, dos filhos e/ou de familiares e precisando realmente dividir as tarefas.

É tempo de aprender (não será fácil) a sermos responsáveis por tarefas básicas que são necessárias para o nosso dia a dia. E que estavam sendo feitas por alguém. Para finalizar, vale pensar neste projeto para diminuir a desigualdade de gênero para a próxima geração. Um estudo publicado em 2017 na prestigiada revista Science aponta que meninos e meninas são afetados por estereótipos que impactam em suas vidas profissionais desde muito cedo. Por isso, vale mostrar aos meninos e meninas que pais e mães são igualmente responsáveis pelo cuidado com a família e a casa. Vale também incluir crianças nesta responsabilidade. O pediatra Daniel Becker amplia seu trabalho ao destacar a necessidade de se envolver as crianças nas tarefas da casa, atribuindo a elas responsabilidade. Igualmente importante que as atividades respeitem a idade das crianças e sejam supervisionadas pelos adultos. Por pais e mães, claro! 

Acredito que no nosso dia a dia podemos fazer pequenas reflexões e grandes transformações. Essa, sem dúvida, pode beneficiar muita gente.

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